Chego à estação um minuto antes do comboio partir. O movimento do costume. Procuro o meu lugar e de passagem reparo num "feijão verde" à paisana que lê o mesmo livro que eu. Passa-me pela cabeça voltar lá mais tarde. Afinal não é todos os dias que se encontram pessoas com quem se possa falar sobre o assunto. Mas não volto. Alguns telefonemas e um lanche depois, enterro-me no banco à procura de posição para ler. Hoje vou sentada de costas para o meu destino. Consigo ver apenas topos de cabeças: alguém com uns daqueles phones enormes, cor-de-rosa bebé... uma cabeleira meia loira, a precisar de retocar as raízes e duas cabeças grisalhas. Do outro lado do corredor, de frente para mim, um homem de meia idade a precisar urgentemente de um banho! Barba até ao peito, encardida, completamente selvagem, mal se vê o nariz vermelho. O cabelo está cheio de gordas rastas naturais... recheadas nem quero saber de quê... Tivesse eu à mão uma tesoura, um par de luvas e um frasco de creolina e talvez me sentisse tentada a fazer uma boa acção. Grândola, Vila Morena. A senhora ao lado dele, com as pérolas a cairem das orelhas, não tem mais para onde fugir. Vai praticamente sentada de lado. Tem muita vontade de trocar de lugar, mas não o vai fazer. Uma garrafa de água fresca, de litro e meio, cai numa daquelas mesas para quatro e fica a rebolar de um lado para o outro. Ninguém se mexe. Vou ler... "Este mundo é uma merda", diz Watanabe. Não anda assim tão longe da verdade. 55 páginas depois reparo que o homem barbudo a precisar de um banho calça apenas uns chinelos de enfiar o dedo. Em pleno Janeiro. De resto: camisa de flanela aos quadrados, casaco de fato abotoado, calças de ganga. O que faria este homem barbudo a precisar urgentemente de um banho no Intercidades Lisboa-Faro esta 6ª feira? Posso estar na presença do génio da Física Quântica com o pior aspecto de sempre, mas nunca saberei. Volto a embrenhar-me nas palavras de Murakami. Quando dou por mim, o homem já não está no seu lugar. Faro à vista.